Nasce o poema.De sete meses?De sete séculos?
A concepção do processo criador tem variações nas diferentes estéticas literárias. Num século, considera-se um processo metafísico. Noutro, um processo cerebral, cartesiano. E, noutro ainda, o que é mais raro, podem coexistir as duas compreensões.
Pois, Ferreira Gullar, autor de Nasce o poema (1), cuja leitura fazemos agora, logo de início se declara desprevenido diante da poesia e duvida da existência de alguém que detenha a fórmula de se preparar para o encontro com ela, a fórmula de submetê-la a sistemas prévios e preceitos autoritários. Quem domará o ímpeto do verso que extrapolará os significados conhecidos do real? Como formalizar um instante perceptivo que é sempre inaugural? Assim, como exigência do que de novo experimentará, o poeta declara que desconhece o que vai acontecer.
Há quem pense / que sabe / como deve ser o poemaeu mal sei como gostaria que ele fosse.
Entendendo a literatura como uma revelação das outras dimensões do real, Clarice Lispector dizia que usava a linguagem como instrumento de apreensão do significado mais intenso das coisas e que o seu destino era ir, ao sabor dessa busca, voltar com as mãos vazias, mas trazendo o indizível (2). É que pra sair atrás do novo é indispensável passar, audaciosamente, pela ameaça de perda do que se leva: fica proibido se defender, é preciso buscar, atrever-se, despir-se, abandonar velhas posições, expor-se. O poeta se descobre um ser passível de constantes abalos, assaltos, assombros, em meio a um processo ininterrupto de autoconhecimento e de indagação do universo com seus metafísicos mistérios, fantásticos senões, entregando-se ao inesperado com paixão, num movimento ousado, infinitamente próximo do risco – e do gozo! Porque a poesia, ah!, essa irrompe donde menos se espera. E precisamente aí, o poético é a negação do limite. O caos? Não, apenas uma outra ordem, profusamente crítica, de indomável fluxo. Roland Barthes (3) explica: “porque ela encena a linguagem, em vez de, simplesmente, utilizá-la, a literatura engrena o saber no rolamento da reflexividade infinita: através da escritura, o saber se constitui, segundo um discurso que não é mais epistemológico, mas dramático”.
Porque eu mudo / o mundo muda / e a poesia irrompe / donde menos se espera / às vezes / cheirando a flor / às vezes / desatada no olor / da fruta podre / que no podre se abisma / (quanto mais perto da noite / mais grita / o aroma) às vezes / num moer de silêncio / num pequeno armarinho do Estácio / de tarde
Tudo ainda não passava de susto e súbita percepção da matéria poética. Dados da vida imediata – como a presença do amigo ansioso e a necessidade de pegar um ônibus – adiam o encontro do poeta com o poema.
talvez não lhe tenha dado tempo / – que o Amílcar estava ansioso / e já se aproximava o ônibus Rio Comprido – Leblon.
À espera do ônibus, o poeta é um homem como tantos outros, com as mesmas “pequenas” necessidades. Vítor Manuel de Aguiar e Silva cita T.S. Eliot: “quanto mais perfeito o artista, mais completamente estão separados nele o homem que sofre e o espírito que cria e, de maneira mais perfeita, o espírito digere e transmuta as paixões que são o seu material” (5).
assim me fui / e o poema ficou talvez / inaturo / parte no ar da loja / parte como poeira / em meus cabelos.
Gullar acredita que o nascimento da poesia não se trata de floração metafísica, nem produto de elaboração cartesiana, mas de um processo específico, com uma dinâmica particular (“um modo próprio de nascer”).
Mas / mesmo que eu tivesse ficado ali / (isso foi em 1955) / nem assim / o poema teria nascido / senão agora neste / hoje / nesta página / pois / a poesia / tem seu próprio tempo e modo / de nascer:
É que a matéria da poesia são os significados residuais, os sentidos aquém e além da linguagem, naquela dimensão que, para Barthes, deixa de ser apenas epistemológica, passando a ser dramática. Por que o poeta não u no mesmo instante o que sentira? O que lhe faltava para escrever o poema se tinha o domínio da linguagem? Talvez se tratasse de uma experiência emocional que ultrapassava a linguagem ou não a alcançava. A razão do poeta estava impotente (ou transbordantemente encantada) para comunicar a outro / leitor o que ele só experimentava pela sensação.
eu de qualquer maneira / teria que ir embora / e nunca mais voltar / à loja do Kalil / para que o poema nascesse / um dia
Qualquer dia, quem sabe, traria aquele acontecimento sensorial à tona da linguagem. O melhor mesmo seria seguir.
Teria / que viver tardes e noites / de exílio em Santiago / do Chile em Moscou
Contra a figura do poeta possesso, eleito de uma “divindade olímpica”, raptado pela inspiração, considere-se que Gullar, até aqui, ainda não conseguiu encontrar-se com a grafia do poema que apenas pressentira no armarinho do Largo do Estácio. Seria, por isso, menos poeta? Ou estaria simplesmente respeitando as limitações do homem e as suas várias outras possibilidades de estar no mundo, a não ser exclusivamente pela poesia? Tcheliábinsk surgirá, então, como metáfora de socialismo, de luta, de interferência imediata na História, e também de distanciamento daquela experiência emocional vivida anos atrás na loja do Kalil. Que se distanciasse, para escrever; embora o poeta pudesse, a qualquer instante, encontrar-se com qualquer outro poema.
me deixar levar / para mais e mais longe / para além dos Urais / além de Tcheliábinsk / com seus campos de trigo / verde e a moça / de olhos verdes e a poça / de lodo verde e a praça / de erva verde / erva / verde / longe / cada vez mais longe / da loja do Estácio, do barulho / dos ônibus do Estácio.
Mas por que mistério Gullar não escrevia logo esse poema? Como explicar tão longo tempo de elaboração? Desde que se discute a dinâmica da criação poética, há que se registrar a concepção que considera a possessão e a concepção que considera a técnica na gênese da elaboração poética: poeta possesso versus poeta artífice.
porque o poema / ninguém sabe como nasce como / a vida o engendra / que pétala / entra / em sua composição / que voz / que latido de cão, ninguém sabe /
barulho de avião / por cima da casa / entra no poema? Um bater de asa? boceta billha mocotó inbasa entram no poema?
O poeta mesmo responde que, no poema, a priori, tudo cabe, não havendo preferência por situações ou palavras: o espaço da reelaboração e da transmutação da experiência, como apontava Eliot. Um espaço em que a experiência está se formulando numa constante tensão dialética, como crê Gullar (4).
entram / e não entram / que tudo o poema aceita / e rejeita / só não se sabe como / nem quando nem qual é a receita
O poeta se resigna com a impossibilidade momentânea, por intuir que, algum dia, explodirá o eco daquela vivência acomodada em algum lugar dele mesmo, ainda distante da consciência, ainda indecifrável, ainda averbal, ainda inarticulável.
até que ele explodisse / (a estrofe) / sob meu paletó / feito um pombo / ou / de nada adiantaria / pois um poema / não nasce antes da hora (de sete meses / de sete séculos).
E depois, para que forçar o curso do tempo, se o tempo emocional escapa ao ritmo lerdo dos ponteiros? Um tempo interior, sem contornos, vibração no corpo, pulsação na consciência. Imensurável, suspenso, descontínuo, pura significação: o gosto da experiência vivida. O poema atualiza a faina da linguagem com esse tempo pessoal e tudo o que nele se guarda. Trinta e dois anos contados pelo calendário podem não dizer do sentido que, às vezes, numa única tarde se revela ou envelhece.
A menos que ficasse lá / (na loja) / de pé durante trinta e dois anos / (já que estávamos / em 1955) / ou que / todo esse tempo durasse / aquela tarde (de abril / a abril) / e como uma nave / (ou ave) / pousasse agora / na cidade
O tratamento do tempo, aqui, aponta para o aspecto cognoscitivo da poesia (de toda a literatura), como meio de introspecção, de perquirição da emoção humana, ao privilegiar o tempo psicológico que, segundo Massaud Moisés, é “o tempo fora da nossa consciência, completamente fora da nossa memória, completamente fora de qualquer medida” (7).
e ainda assim / não nasceria / porque o tempo não é o mesmo / se dentro ou fora / do armarinho / se pura ideia ou sujo / da matéria dos dias
Poético é o relampejar de um gosto, de uma sensação, de um arrepio. Poético é compreender (possuir) um significado intraduzível e emocionar-se. Teria sido o que ocorreu a Gullar naquela tarde de 1955 e que, até hoje, o poeta não consegue nomear?
Para Maria José Queiroz, o grande paradoxo da imaginação criativa é o de apreender o inefável: “cabe portanto ao poeta traduzir em realidade expressiva a realidade silenciosa do mundo sensível” (8).
Em Nasce o poema, Ferreira Gullar nos faz tocar o inefável.
como medir / o cheiro / da tangerina / que é / clarão / na boca e sonho / na floresta? Como?
Não, não havia por que / deixar de tomar o ônibus Rio Comprido – Leblon / naquele fim de tarde.
* Lenita Estrela de Sá é escritora, tendo livros publicados nos gêneros poesia, teatro e conto.
- Ferreira. Barulhos. Rio de Janeiro, José Olímpio Editora, 1987.93p.
- WALDEMAN, Benta. Clarice Lispector. Coleção Encanto Radical. S. Paulo. Ed. Brasiliense, 1983. 107p.
- BARTHES, Roland. Aula. São Paulo, Ed. Cutrix, 1978.89p.
- SÁ, Lenita Estrela de. Contra a solidão, contra a morte, pelo prazer se manifesta o poeta. O Estado do Maranhão, São Luís, 08 nov. 1986. Caderno Alternativo.
- SILVA, Vitor Manuel de Aguiar e. Teoria da Literatura. 3ª Ed Coimbra, Livraria Almedina, 1979. 711p.
- LUKÁCS, George. Marx e Engels como historiadores da literatura. PORTO, Editora Nova Crítica, 1979. 162p.
- MOISÉS, Massaud. A criação literária – prosa. 9ª edição. São Paulo, edições Melhoramentos, 1979.368p.
- LISBOA, Henrique. Miradouro e outros poemas. Prefácio de Maria José de Queiroz. 2ª ed. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1976.163p.