segunda-feira, 10 de abril de 2017

"DERRIDA NA UERJ: UM ENCONTRO SOLIDÁRIO" - ARTIGO DO PROFESSOR E ESCRITOR EVANDO NASCIMENTO





De 17 a 20 de abril, ocorre no Rio de Janeiro o colóquio internacional A solidariedade dos viventes e o perdão: Jacques Derrida/Evando Nascimento: questões de ética, política e estética. Além da solidariedade dos viventes - tema caro ao filósofo franco-argelino -, também serão abordados outros temas de interesse de Jacques Derrida (1930-2004) como poesia, hospitalidade, o estrangeiro e os animais. O evento ocorre na Pós-graduação em Letras da UERJ e na Mediateca da Maison de France. A programação consta neste link.
Por ocasião do evento e da crise da UERJ, o pesquisador e professor Evando Nascimento escreveu o artigo abaixo, abordando o teor político que existe em organizar um colóquio sobre Derrida em uma Universidade vitimada pela má gestão. Ele procura olhar os problemas da instituição federal sob perspectiva de algumas ideias do filósofo. 
Evando Nascimento publicou diversos livros de ensaio e ficção, entre eles Derrida e a literatura (É Realizações) e Cantos profanos (Globo). Lecionou na Universidade Federal de Juiz de Fora e na Université Stendhal de Grenoble (França). Foi também pesquisador do CNPq. 

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Prefiram sempre a vida 
e afirmem incessantemente a sobrevivência...
Jacques Derrida

Quando, no primeiro semestre de 2016, oprofessor de Teoria da Literatura Nabil Araújo me propôs realizar um evento na Casa de Leitura Dirce Cortes Riedel, em torno de um livro que eu havia publicado com Jacques Derrida na França, La solidarité des vivants et le pardon [A solidariedade dos viventes e o perdão] (edições Hermann), mal podia imaginar a crise que aconteceria mais adiante. Situado no bairro de Botafogo, o belo casarão antigo que abriga a Casa de Leitura pertence à Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e foi recentemente reformado, atuando como um de seus espaços culturais mais importantes, com eventos e minicursos gratuitos, abertos a toda a comunidade.
Aceitei o convite com entusiasmo e o evento foi programado para se realizar nas melhores condições, com convidados nacionais e internacionais. Além da própria Casa de Leitura, o projeto ganhou o apoio de instituições de peso, tais como a Pós-Graduação em Letras da UERJ, a Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC), uma das maiores associações de literatura do mundo, o Escritório do Livro, sediado no Consulado Geral da França no Rio de Janeiro, a Aliança Francesa do Brasil, a Coordenação Nacional de Aperfeiçoamento de Docentes (CAPES) e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (FAPERJ). Para um momento de refluxo de verbas destinados à pesquisa, essas colaborações se mostraram decisivas. Dada a sua amplitude, o evento acabou sendo deslocado do casarão em Botafogo para um auditório no próprio campus da Universidade, localizado no bairro do Maracanã. Entretanto, no meio do caminho haveria um rochedo monumental: a UERJ entrou em crise orçamentária, em razão do não repasse de recursos para a instituição por parte do governo do Estado.
Sabe-se que a inadimplência atual do Estado do Rio de Janeiro não é fruto do acaso, mas está ligada diretamente à má gestão do dinheiro público, seja por incompetência, seja por desvio de verbas, as quais, em princípio e por princípio, deveriam ser prioritariamente destinadas à educação, à saúde e ao benefício público em geral. Não por simples coincidência, o ex-governador do Estado no período, Sérgio Cabral, se encontra na prisão, tendo sido substituído por seu vice-governador, o inefável Luiz Fernando Pezão. Não sou especialista no assunto, e por isso não me estenderei a esse respeito. Recomendo, todavia, como um dos esclarecimentos mais lúcidos acerca do problema, um artigo recente do professor e advogado Ricardo Lodi Ribeiro.
Diante do quadro catastrófico em que se encontra a UERJ, com atraso de salários de técnicos e professores, suspensão de bolsas de alunos e pesquisadores, bem como redução financeira drástica para manutenção física de seu imenso prédio, surgiu a questão: como manter um colóquio desse porte num momento de crise? Foram convidados especialistas do nível de Fernanda Bernardo, professora da Universidade de Coimbra, grande tradutora da obra de Derrida, e de Ginette Michaud, professora da Universidade de Montreal e uma das responsáveis pela edição dos seminários de Derrida para a editora francesa Galilée. Participarão ainda Marcos Siscar, da Unicamp, e Alcides Cardoso dos Santos, da Unesp, entre outros autores de textos relevantes sobre o tema. A resposta à pergunta dolorosa foi singela e objetiva: tal como outros eventos e conferências que continuam ocorrendo na UERJ, manter o colóquio se tornou um ato de resistência política e educacional. Desistir seria ceder às forças fascistas que desejam de todos os modos destruir o ensino público e gratuito no Brasil.
É nesse sentido que a crise uerjiana afeta a todos nós. Sabe-se que os melhores centros de pesquisa e ensino do país são públicos. Com exceção de algumas PUCs e de fundações como a Getúlio Vargas, nenhuma universidade privada se compara às nossas grandes universidades federais e estaduais, algumas delas com pesquisa científica de referência mundial, como a USP e a UFRJ.
A situação crítica não é apenas atual, remonta a mais de uma década, envolvendo a educação pública como um todo e não somente o nível superior. Os anos do governo de Fernando Henrique Cardoso foram um dos piores que conheci desde que entrei na graduação da Universidade Federal da Bahia, em 1979. No período de gestão neoliberal e privatização acelerada do governo do PSDB, houve um quadro de precarização geral das instituições federais: grande parte dos efetivos docentes foi substituída por professores com contrato provisório, laboratórios foram desativados ou reduzidos significativamente em sua capacidade e verbas para pesquisas minguaram ao extremo. Durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, houve uma reconstituição geral dos quadros, com a efetivação de professores e funcionários, além da abertura de novas Universidades Federais. Lamentavelmente, a mesma política não foi aplicada aos níveis básicos e médios do ensino durante o governo do petista, por motivos que cabe cada vez mais analisar, pois o descaso perdura. No governo Dilma Rousseff, os recursos destinados à educação superior continuaram existindo, mas com tendência à redução. Depois do golpe e da instalação do governo Temerário, a tendência geral é de cortes brutais e desvalorização do ensino público e gratuito. Exemplo máximo disso é o fato de um dos organismos mais importantes para a investigação científica, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), encontrar-se em situação de redução dramática de suas verbas, sem as quais a pesquisa de ponta não avança.
A crise não é, portanto, apenas da UERJ, mas envolve o ensino público como um todo, e o ensino universitário em particular. Trata-se de uma das instituições mais prestigiosas do país, e deixar que o descalabro continue, com o fechamento inclusive de um importante Hospital Universitário, é ceder à política geral de privatização. Nada tenho contra a iniciativa privada, e, como apontei, há instituições particulares de alto nível, mesmo que não sejam a regra. Todavia, no mundo todo, mesmo nos Estados Unidos, onde se destacam as Universidades particulares, a verba estatal é indispensável ao desenvolvimento do saber, seja nas chamadas humanidades e nas artes, seja no campo das ciências exatas.
A essa altura, as leitoras e os leitores devem se perguntar o que Derrida tem efetivamente a ver com isso. Ao contrário do que pregam muitos de seus detratores, a desconstrução ou as desconstruções (no plural, como prefiro) nada têm a ver com “destruição”. O pensamento de Derrida se desenvolveu principalmente na Universidade e tem como um de seus propósitos repensar o legado da cultura ocidental em seus fundamentos metafísicos. Em inúmeros textos, Derrida defende que é preciso, por exemplo, ler cuidadosamente a filosofia para desconstruir seus pressupostos metafísicos e fazer avançar o pensamento. Nesse sentido, ajudou a fundar o importante Colégio Internacional de Filosofia, em Paris. Em livros como O olho da Universidade e A Universidade sem condição (ambos publicados aqui pela Estação Liberdade), procurou analisar a importância das instituições universitárias para o advento de uma efetiva democracia por vir.
O conteúdo de diversos outros livros derridianos versa sobre questões relevantes como o “falogocentrismo” (seu termo para desconstruir a misoginia e a homofobia, por exemplo), o antropocentrismo, o estrangeiro, a hospitalidade, a amizade, o dom, a abolição da pena de morte no mundo e os animais. O perdão, tema fundamental do colóquio na UERJ, foi sua contribuição, na segunda metade dos anos 1990, para se refletir sobre a diferença entre perdoar, anistiar, reconciliar e esquecer. A introdução que fiz ao livro francês La solidarité des vivants et le pardon, intitulada “Derrida au Brésil”, aborda essa e outras questões. O volume traz ainda duas entrevistas que fiz com Derrida para a Folha de S. Paulouma em 2001 e outra em 2004. Esta última se deu em função da vinda dele para o que seria sua última conferência em vida, realizada no Rio de Janeiro, na abertura do evento internacional que organizei com minha colega da Universidade Federal de Juiz de Fora, Maria Clara Castellões de Oliveira, numa parceria com o Consulado Geral da França. Esse colóquio histórico entrou literalmente para a Biografia de Derrida, sendo narrado em duas páginas do belíssimo livro de Benoît Peeters, traduzido pela Civilização Brasileira (2013).
Não somente no Brasil, mas também no exterior, a vida da Universidade e da cultura em geral corre riscos de aniquilamento. Basta ver a política culturalmente deletéria de Donald Trump. Não é aleatório o fato de o colóquio e o livro a que se refere conterem a palavra solidariedade no título. Quando uma instituição de excelência como a UERJ se vê ameaçada em sua integridade, é toda a comunidade universitária que está também sob risco de extinção. Pois é função da Universidade estudar e ajudar a preservar a própria vida humana, animal e vegetal, a qual se encontra em perigo em toda parte. Tal foi a tarefa a que Derrida se dedicou integralmente: preferir a vida e reafirmar a sobrevivência, como um legado político e ético ao porvir planetário. Há dom maior do que esse para a coabitação universal das espécies?
Creio que está na hora de toda a comunidade universitária, no Brasil e no exterior, promover um movimento solidário de preservação da UERJ. De outro modo, é o próprio conhecimento, universitário ou não, que se coloca a caminho da destruição, acarretando a subjugação das forças vitais que sustentam as artes, a literatura e a ciência em geral. Os diversos protestos e ocupações surgidos nos últimos meses já vão nesse sentido. Termino parafraseando um dos títulos politicamente mais enfáticos de Derrida: Cosmopolitas de todos os países, mais um esforço!

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